#Conto - Sala Pós-vida


Sinto imensa dificuldade em respirar. O som dos aparelhos a minha volta mostram claramente a minha situação. Um simples moribundo.
Sem família, sem amigos, somente eu e Deus. Um fim triste? É o que muitos diriam. Mas... não. Vivi como eu devia viver. Minha amada esposa já partiu há alguns meses. Meus filhos? Meus orgulhos estão fora do país. Acredito que estejam sendo informados neste momento sobre minha estadia aqui.
Meu corpo enfraquece a cada segundo. O relaxamento é gradual e agradável. Todos desejariam uma morte assim. Relaxo profundamente a ponto de meus olhos se fecharem. Então eu durmo. Durmo pela última vez.
- Doutor? Doutor? Tudo bem? - ouço a voz feminina - Tome cuidado ao abrir os olhos... O senhor sentirá ardência e sua vista estará completamente embaçada.
Abro meus olhos, mas abro aos poucos. A dor parece estar dentro dos olhos e ela é gigantesca. Parece que não conseguirei abrir os olhos tão cedo.
- Injetaremos uma substância que lhe ajudará, doutor. - disse a voz feminina.
A ardência diminui significativamente. Abro meus olhos com mais facilidade. Após algum tempo, cerca de 15 minutos, percebo que minha visão está quase totalmente restaurada.
- Onde estou? - pergunto, com a voz fraca.
- Está em casa, doutor. Meus parabéns, a experiência foi um sucesso!
Eu estava totalmente confuso. Realizaram alguma experiência durante meus últimos segundos de vida? Sinto-me fisicamente cada vez melhor. Minhas articulações não doem mais. Levanto meu braço direito e admiro minha mão que aparenta ser a mão de um jovem na casa dos 20 anos.
- Trocaram o meu corpo? Transferiram o meu cérebro? O que fizeram comigo? - perguntei desesperado.
- O doutor não consegue se lembrar? - questionou a moça de cabelos loiros e óculos.
- Eu me lembro que há poucos minutos ou talvez horas eu estava em um leito de hospital prestes a morrer. Só isso.
- Calma, explicaremos tudo, doutor. Tente se levantar agora. - a moça encosta as mãos em meus ombros na tentativa de me auxiliar no levantamento.
Consigo me sentar. Um rapaz jovem, de jaleco e com a aparência de um assistente, entra na sala com semblante contagiante e alegre.
- Que bom vê-lo novamente, doutor! - estendeu a mão para cumprimentar-me - Tem uma platéia louca para te ouvir no pátio de palestras.
- Por que querem me ouvir? O que eu fiz? - indaguei.
- Você ainda não explicou para ele, doutora? - pergunta o aparente assistente à moça loira - Então eu conto.
O rapaz sentou-se à minha frente.
- O senhor é um dos maiores nomes da ciência moderna. Após a Terceira Guerra Mundial parte da população humana morreu. Em certa altura da guerra, os países passaram a não respeitar mais os tratados diplomáticos e deram início ao uso de armas químicas. Isso devastou o mundo.
Ele se levanta, pega uma foto próxima e a me mostra.
- Este é você, doutor, em uma das nossas premiações internas.
- Apesar de tudo estar confuso, continuo não entendendo a tal experiência que fizeram comigo. - disse, enquanto milhões de pensamentos passavam por minha mente. Fui enganado?
- O senhor mesmo criou o projeto "Alma Pura". Este projeto consistia em inserir algum sujeito em uma simulação de vida comum, a vida como era antes da Terceira Guerra Mundial, para fazer com que o mesmo sujeito aprendesse coisas que somente a vida pode ensinar e trazer estes ensinamentos para estas gerações pós-guerra.
- Trazer os ensinamentos? - pergunto - Mas quanto tempo faz que a Terceira Guerra acabou?
- Já se passaram dois séculos doutor. - respondeu a moça.
- E por que precisam destes ensinamentos? A vida não é a mesma?
- Não, doutor. - respondeu o jovem - Quase tudo aquilo que sabíamos sobre a ciência foi perdido. Restaram apenas alguns aparelhos da tecnologia moderna. Para seu experimento foram necessárias apenas duas máquinas: um simulador de ilusão cerebral e um computador ultra potente. E deu certo, eis o senhor aí!
Um misto de emoções me invade. Sim, tudo foi mentira e eu fui enganado. Aperto os lençóis com força. Percebem minha ira.
- Por que fizeram isso comigo? - pergunto enquanto seguro minhas emoções.
- Foi a sua vontade, doutor. - responde a moça - Insistimos para que chamasse outro, mas o senhor decidiu ir por sua conta e risco. Temos aqui uma documentação assinada para servir como prova.
Tomo os papéis e, realmente, ali consta minha assinatura. Fui conivente com tudo isso.
- Bom... Se me alimentarem bem, em alguns minutos estarei pronto para esta platéia. - afirmo - Vou dizer a eles o que aprendi com a vida.
Um semblante alegre toma o rosto daqueles dois cientistas. Seus nomes: Kethelin e Júnior, perguntei seus nomes enquanto se levantavam para ir à cozinha.
Cinco minutos se passam e eles retornam com um sanduíche e um copo de suco natural, segundo eles.
- Grato. Estou pronto. - digo aos dois jovens enquanto me levanto, um pouco desequilibrado.
Percebendo que não conseguirei manter-me muito tempo em pé, Kethelin e Júnior me acompanham até a sala de palestras com os meus braços sobre seus ombros.
A forte luz se aproxima. É a entrada direta para o palco. A platéia aplaude em pé minha chegada ao microfone. O forte holofote me incomoda, mas isso não importa, pois tenho que finalizar esta missão.
Os aplausos duram um bom tempo. Finalmente o silêncio se instaura.
- Bom dia... Aliás... que horas são? - pergunto como uma criança inocente.
A platéia ri.
- Enfim... vamos lá. - toco a minha testa em sinal de indecisão. Como explicar a vida em forma de palestra? Difícil tarefa.
Respiro fundo e inicio meu relatório improvisado.
Ah... A vida.
Como explicar a vida?
Aparentemente sem sentido.
Um ser pensante sendo devorado lentamente pelo imbatível fluxo do tempo, este é um ser humano em vida.
Percebi que viver é um presente, uma verdadeira dádiva divina!
E vejam só, que engraçado! A maioria das pessoas, pelo menos naquela época, não sabiam como usufruir deste presente.
Devo confessar que eu mesmo falhei nisso.
Durante minha infância sonhei em ser adulto.
Enquanto adulto, sonhei em viver a infância novamente.
Sendo pobre, almejei a riqueza.
Ao ter riqueza, senti falta da paz que a humildade gera.
Quando eu tinha tempo de sobra, mal soube aproveitá-lo.
E quando este me faltou, pus-me a reclamar.
Tive pessoas maravilhosas ao meu redor e não dediquei a elas o máximo de mim.
Por outro lado, quando a solidão bateu em minha porta, as via como o bem mais valioso da existência.
Apenas no final da minha vida me dei conta do quão a desperdicei.
Coisas, dinheiro, fama, diplomas... nada disso pôde despertar em mim a sensação de dever cumprido.
O que eu mudaria se tivesse uma segunda chance?
Mudaria meu foco.
Venderia tudo, se fosse necessário, para viver mais um único dia com as pessoas que amei.
Como elas vão me fazer falta!
Sim, eu sei que tudo foi uma simulação, mas e daí? Eu as amei!
Vocês que vivem nesta geração, prestem atenção.
Deixem os seus jalecos guardados às vezes e vão se sujar com aqueles que amam.
Seus jalecos podem ser reutilizados quando quiserem, mas as pessoas têm prazo de validade.
Eis aí o que aprendi com a vida.
E antes que eu me esqueça:
O Autor da vida é quem nos receberá do outro lado desta "simulação", tenham certeza.
Como Deus foi sábio ao afirmar: ame o seu próximo.
Ele sim sabia o que realmente vale a pena nesta vida.
Espero ter cumprido minha missão e entendido o que a vida nos quer ensinar.
A platéia aplaude calorosamente. Parecem estar extremamente surpresos com o que declarei. O que esperavam? Uma análise científica? A vida é muito mais do que números.
Sinto-me cansado. Kethelin me leva cautelosamente até meu aposento. Uma cama bem arrumada me aguarda.
Me deito com cuidado e fecho meus olhos. Kethelin se compromete a apagar a luz.
Mas antes de apagá-la, Kethelin diz em voz baixa e com tom de satisfação.
- É... Você realmente aprendeu a lição, filho. Foi bom ter criado a vida.
Caio em sono profundo. Agora sim, meu último sono.
O Autor da vida me aguarda do outro lado.

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